Procurei sempre distinguir aquilo que crio daquilo que faço, para me alimentar, empurrado pelo sistema que critico mas que, por essa atitude existir, também acabava por se perpetuar comigo. De dia assumia o ar lavado e contornado por um nó de gravata cada vez mais perfeito, apesar de instintivo; de noite só a imaginação me limitava ou uma namorada que sofresse de homofobia ou de um gosto intransigente. O propósito era servido: quando cinzento estava só uma pessoa mais sensível era capaz de me ver como alguém fardado por obrigação, quando à paisana todos assumiam que algo de artístico sustentava o meu ser. Ou uma ou outra portanto nunca a sua intersecção.
Uma pessoa com quem dormia disse-me mais de uma vez que gostava desta minha dualidade à la Clark Kent; sinto hoje que foi das coisas que mais a fascinou e ajudou a promover uma cisão da minha personalidade entre estes dois extremos aparentes. Agora que já não durmo com ela, e existem vestígios cada vez menores da sua presença no que me rodeia, tenho vindo a pensar diariamente, no tópico deste texto também promovido pelo peso crescente de pessoas que tanto entendem do meu trabalho como da minha paixão criativa no meu quotidiano. Partindo de conversas bem argumentadas e do respeito claro que tenho pelo que me dizem sinto uma alteração clara na minha auto-avaliação.
A limitação de uma pessoa a uma determinada área e às perspectivas associadas à mesma reflectem-se na qualidade de uma obra/ vida, que por consequência terão de ser adjectivadas exactamente da mesma maneira. O sistema educacional não promove formas de pensar holísticas desde uma idade tenra e, caso a família não seja minimamente abastada, as alternativas extra-curriculares terão uma presença limitada no currículo de um futuro indivíduo e, consequentemente, tudo o que é considerado alternativo pela maioria, neste sistema instruída, sendo o alternativo cultural (música, teatro, cinema...), não fará parte dos interesses da massa para além do voyeurismo permitido pelos meios de comunicação e produções de fraca qualidade promotoras de sonhos consumistas.
Do sistema actual acabam por se manifestar dois extremos que indicam a separação entre a razão/ciência e a emoção/ciência social quase por inteiro; a primeira grande escolha individual sob o futuro de um indivíduo, aos 16 anos, implica que ele tenha de escolher entre a aprendizagem de uma sensibilidade artístistica, desde a sua história às distintas maneiras de a manifestar, e o desenvolvimento de uma lógica matemática e um conhecimento físico do funcionamento do mundo. O irónico deste tipo de pensamento é a sua contemporaniedade já que historicamente a cisão entre a ciência a e arte não era vista como um dado adquirido; no Renascimento era clara a sinergia que existia entre o que hoje é antagónico bem como os avanços que foram permitidos por estes sistemas que só hoje não são complementares; os estudos de geometria de Duhrer, os estudos anatómicos de Da Vinci, os estudos de materiais que cada pintor empreendeu para assegurar a sua posição numa corte que pagasse os seus serviços.
O pensamento toldado em categorias não intersectáveis também se reflecte em manifestações sociais que automaticamente se excluem. A diferenciação entre quem cria/ sente e quem pensa/ trabalha é uma certeza do paradigma actual do mundo desenvolvido; contrariamente à fase referida há pouco, em que o artista assumia uma posição relevante na sociedade e era considerado um membro integrante da mesma, nalguns casos até um factor diferenciador no poder de um reino/império independentemente da sua especialização, hoje ele é visto como alguém que à margem dele vive e cuja subsistência é assegurada ou por um estado social que se obriga a participar na área cultural, com o intuito de a integrar na sua estrutura social, ou por uma estrutura de agenciamento, galerias, que, no limite, se cingem, por uma percentagem do valor percebido do artista, a garantir-lhe um meio de comunicar/ chegar a um grupo social que, por não o entender, necessita de uma confirmação de que aquilo que ele faz é "bom" e merece o seu "investimento". A não integração reflecte-se num desfasamento de sensibilidades, na falta de entendimento de um sistema, por ser composto por equações não complementares, e daí resulta um produto que não serve verdadeiramente a alguém que não pertença ao nicho que o produz, que não entenda os conceitos ou história por detrás de uma construção artística. Tudo isto desemboca numa marginalização da outra parte por cada parte e na necessidade de enaltecer estas diferenças desde a maneira de vestir, à maneira de falar, às dietas, aos ideais, às reinvidicações, tudo para que cada um de nós assegure a si mesmo, e a quem o rodeia, que está num dos lados da barricada.
Diariamente saltei de um lado para o outro. Constantemente me preocupei a mostrar uma fracção de mim em função das horas do dia e de quem me rodeava limitando, como a sociedade supra-citada, todo o potencial do que sou. Trabalho com os números do lado que me formou e tenho a necessidade instintiva de me exprimir contra o que está instituído tanto de um lado como o outro. Uso fato por vezes, por vezes cobre-me a obsessão dos meus dias em tinta ou em palavras que junto de uma maneira própria. Sou a soma de partes que geralmente não se encontram e, por essa condição maioritariamente imposta, sou do mais subversivo que há. Num futuro próximo é assim que quero que me tomem, como cada vez mais me vejo, através do produto que resultará da intersecção dos meus lados, de uma sensibilidade estruturada pela forma como fui criado e, acima de tudo, que surge dos estímulos que os meus mundos me dão. Valem-me os valores que por vezes esqueci que possuía, eles são o denominador que torna o aparentemente oposto comum.
Outros há como eu e se depender só de mim que todos se juntem pelo que valem e valorizam. Quando o Grupo chegar, quando o Grupo se mostrar, quando o Grupo fizer um-a-um todos irão ser parte dele.
Vou-me com a base do manifesto.
"A quem fode para criar, não a quem cria para foder"